A Mediação Familiar e a Audição Técnica Especializada no Regime Geral do Processo Tutelar Cível

A Mediação Familiar e a Audição Técnica Especializada no Regime Geral do Processo Tutelar Cível

Propomo-nos, numa breve análise, discorrer sobre dois “instrumentos” incluídos no Regime Geral do Processo Tutelar Cível (RGPTC), que visam o alcance de melhores e mais eficazes respostas aos conflitos familiares, que envolvendo crianças e tramitando nos tribunais, estejam no âmbito de aplicação daquele normativo.

É de sublinhar a importância que tem o facto de naquele diploma, de cariz processual, serem integrados dois instrumentos, a Mediação Familiar e a Audição Técnica Especializada (ATE), que no articulado da lei se acompanham a par e passo, mas que constituem intervenções diferenciadas, sendo a audição técnica especializada uma inovação ao passo que a mediação já integrava o texto da Organização Tutelar de Menores (OTM) revogada pelo RGPTC em 2015.

Desde inícios da década de 90 que profissionais envolvidos na aplicação prática do direito da família, procuravam acolher novas respostas, já conhecidas no ordenamento jurídico internacional e preconizavam a sua implementação entre nós.

Entre nós, a primeira menção escrita à mediação, enquanto meio adequado de resolução de conflitos familiares e o primeiro incitamento à necessidade de criação de estruturas que possam desenvolver esta actividade, consta do “Protocolo de Colaboração entre o Ministério da Justiça e a Ordem dos Advogados no âmbito do projecto «Mediação Familiar em Conflito Parental»”, que viria a ser assinado em 16 de Maio de 1997 durante o I Congresso Internacional de Mediação Familiar, organizado pela Associação Nacional para a Mediação Familiar-Portugal e que decorreu no Centro de Estudos Judiciários.

A pertinência da referência a este Protocolo no presente artigo prende-se, não só com o devido lugar na história, mas também com o facto de no seu texto se encontrarem plasmados dois elementos fundamentais da mediação familiar, na concepção que dela sempre preconizámos, referimo-nos à aptidão da mediação para a promoção de condições de efectiva coparentalidade e à sua complementaridade com a intervenção judiciária.

Entendemos a mediação como a abordagem mais adequada e eficaz na resolução de conflitos familiares, desde logo pela forte carga emocional de que estes se revestem e pelas relações e vínculos existentes entre as partes conflituantes, relações que em momentos de tensão e de crise devem ser cautelosamente cuidadas com vista à sua preservação.

Se um litígio pode ser resolvido no palco judicial, por aplicação da norma aos factos, já o conflito que lhe subjaz, composto de factualidade e estados emocionais, pode perdurar e minar as relações familiares ad eternum. A resposta mediadora tem em si uma abrangência que lhe permite acolher emoções, promover a compreensão recíproca e a aceitação das diferenças, enquanto conduz as partes conflituantes na descoberta da sua própria solução legal.

A mediação de conflitos familiares inscreve-se nas políticas de diversificação de meios de resolução de conflitos e de menor ingerência do Estado na vida das famílias, enquanto promove a sua autodeterminação e é para nós significante de um elevado estádio civilizacional.

O Protocolo a que nos referimos anteriormente deu lugar, em 15 de Setembro de 1999, à abertura do primeiro serviço público de mediação familiar, então, limitado à resolução de conflitos inscritos no exercício da parentalidade. Registe-se a consonância temporal com a publicação da Lei n.º 133/99 de 28 de Agosto que, dando cumprimento a propostas contidas na Recomendação n.º R(98) 1 do Comité de Ministros do Conselho da Europa, adita à OTM o art.º 147.º-D, com o seguinte conteúdo: “1 – Em qualquer estado da causa e sempre que o entenda conveniente, designadamente em processo de regulação do exercício do poder paternal, oficiosamente, com o consentimento dos interessados, ou a requerimento destes, pode o juiz determinar a intervenção de serviços públicos ou privados de mediação. 2 – O juiz homologa o acordo obtido por via da mediação familiar se este satisfizer o interesse do menor.”.

Consagrou-se, nestes termos, a primeira norma adjectiva, que no decurso de um processo judicial permite o recurso à mediação familiar, atribuindo legitimidade para a sua suscitação quer ao juiz, quer às partes envolvidas se bem que, em nome do princípio da voluntariedade, princípio estruturante da actividade mediadora, só com o consentimento dos interessados pudesse ser requerida a intervenção dos serviços de mediação.

Decorria da letra da norma que a finalidade da intervenção dos serviços de mediação era o alcance de um acordo, que o juiz teria de homologar conferindo-lhe, por essa via, a eficácia de uma sentença judicial, a menos que o acordo não acautelasse o interesse das crianças a que se destinava.

Esta norma, que integrava a OTM e reflectia o reconhecimento pelo potencial da nova forma de abordagem dos conflitos parentais, enquanto promotora da construção de soluções pacificadoras e exequíveis, não só sobreviveu à revogação daquele quadro normativo aquando da entrada em vigor do RGPTC em Outubro de 2015, como veio a ser reforçada na nova lei, que regula a intervenção mediadora e impõe ao juiz o dever de informação das partes sobre este meio de resolução de conflitos.

Na verdade, a OTM fora parcialmente revogada em Setembro de 1999 pela entrada em vigor da Lei de Protecção de Crianças e Jovens em Perigo e da Lei Tutelar Educativa, tendo o legislador, numa grande reforma, optado pela separação das matérias referentes às crianças em perigo, das matérias referentes aos jovens que praticassem actos qualificados pela lei penal como crime e deixando na OTM, essencialmente, o que aos processos de regulação, alteração e incumprimento do poder paternal dizia respeito.

Contudo, impunha-se uma nova ordem para as questões da regulação das responsabilidades parentais. O elevado número de rupturas conjugais, os efeitos danosos para os filhos que as vivenciam, uma demora processual incompatível com as necessidades das famílias, nomeadamente na definição de regras organizadoras da vida pós-ruptura e a necessidade de preservação de relações familiares que assegurassem uma coparentalidade funcional, integravam a vasta panóplia de motivações para que o legislador repensasse o que sobejava da OTM. Para além destes motivos que configuravam um desfasamento da realidade social, verificava-se, também, alguma inconformidade entre a lei substantiva e a lei adjectiva, na medida em que o Código Civil sofrera alterações, de relevo, introduzidas pela Lei n.º 68/2008 de 31 de Outubro, em matéria de divórcio e responsabilidades parentais.

O artigo 1906.º do Código Civil é exemplo dessas alterações não só pelo novo modelo de exercício da parentalidade instituído em casos de separação e divórcio, como pela própria terminologia usada. Foi abolida a expressão “poder paternal” que deu lugar à designação “responsabilidades parentais”, mas enquanto isso mantinha-se inalterado o texto da OTM, coexistindo as responsabilidades parentais da lei substantiva com o poder paternal da lei adjectiva.

É neste panorama social e legal que se desenha o Novo Regime Geral do Processo Tutelar Cível assente em quatro pilares: o da agilização de meios, o da celeridade processual, o da eficácia da resolução de conflitos e o da priorização do benefício da criança.

O novo normativo estende aos processos, nele abrangidos, os princípios orientadores da intervenção contidos na lei de protecção de crianças e jovens, mas acrescenta-lhes três princípios inovadores, o da simplificação instrutória e oralidade, o da consensualização e o da audição e participação da criança.

Chegamos agora aos dois instrumentos, que nos propusemos abordar e cuja primeira menção se encontra na b) do n.º 1do art.º 4.º do RGPTC, que ao densificar o princípio da consensualização afirma que “os conflitos familiares são preferencialmente dirimidos por via do consenso, com recurso a audição técnica especializada e ou à mediação, e, excecionalmente, relatados por escrito”. Vislumbra-se neste preceituado um reflexo daquilo que a Convenção de Estrasburgo sobre o Exercício dos Direitos das Crianças propugnava ao motivar os Estados adoptantes a “…encorajar o recurso à mediação ou a qualquer outro meio de resolução de conflitos, bem como a sua utilização para chegar a um acordo”, tendo, claramente, o nosso legislador associado no mesmo artigo e sob a égide do princípio da consensualização uma diligência instrutória e um meio puro de resolução de conflitos.

Na verdade, e já no Capítulo das Disposições Processuais Comuns (alínea b n.º1 art.º 21.º) se constata a mesma integração paralela da ATE e da Mediação Familiar como diligências passíveis de serem ordenadas pelo juiz, com vista à fundamentação da decisão.

Uma e outra intervenção têm natureza, procedimentos de actuação, princípios e objectivos diferentes, sendo que no nosso entender existe uma imperfeita integração da mediação no art.º 21.º como instrumento que visa a fundamentação da decisão judicial. Se atentarmos no conteúdo do art.º 39.º n.º 3 que determina que, finda a mediação, o tribunal notifica as partes para a continuação da conferência com vista à homologação do acordo estabelecido em sede de mediação e o compararmos com o n.º 1 do mesmo artigo, que determina que, finda a intervenção da ATE, o tribunal notifica as parte para a continuação da conferência com vista à obtenção de acordo da regulação do exercício das responsabilidades parentais, percebemos claramente que é pressuposto desta última intervenção, o fornecimento ao tribunal de novos elementos que permitam a continuidade do processo judicial e que na prática integram um relatório escrito que, uma vez finda a audição técnica especializada, é enviado ao processo.

Da mediação apenas chegará ao tribunal um acordo, que pela sua homologação põe fim ao processo judicial, ou chegará a informação de que não foi possível alcançar consenso, situação em que o procedimento segue os seus trâmites sendo retomado no exacto ponto em que foi suspenso para efeitos de recurso à mediação. No caso de ter sido determinada a intervenção da ATE, finda esta, o tribunal disporá de um relatório do qual constarão elementos pertinentes para a fundamentação da decisão que vier a ser tomada, uma vez que o documento em causa deve conter, entre outros elementos, uma avaliação das competências parentais, configurando-se assim aquela intervenção, como verdadeira instância instrutória.

Note-se, ainda, que nos termos do art.º 39.º do RGPTC, à intervenção da mediação e da ATE, segue-se sempre uma conferência, no primeiro caso com vista à homologação de um acordo e no segundo caso com vista à obtenção de acordo, sendo certo que se trata de acordos processualmente diferentes uma vez que em sede de mediação o processo é conduzido pelo mediador, mas os conteúdos são ditados exclusivamente pelas partes, enquanto que na conferência posterior à ATE é o juiz quem dirige o processo de procura de acordo, tendo poderes para intervir nos conteúdos reformulando e propondo cláusulas que o integrem.

As diferenças atinentes à função e poder do profissional que intervém num e noutro processo, aliadas ao diferente nível de autodeterminação das partes em cada um dos casos, determinam diferentes níveis de eficácia e de taxa de cumprimento dos acordos alcançados, na primeira hipótese, por via da mediação e na segunda por via da conciliação.

Recuando ao art.º 23.º do RGPTC, especificamente dedicado à Audição Técnica Especializada descortinamos a sua finalidade preparatória e instrutória das fases processuais que se lhe vão seguir, preparatória da conciliação na medida em que as partes deverão ser informadas e sensibilizadas para formas consensuais de gestão de conflitos ficando mais predispostas para a cooperação no alcance de um acordo, instrutória da audiência de discussão e julgamento, no caso de se frustrar a conciliação, pois a avaliação das competências parentais realizada em sede de ATE pode constituir elemento determinante na fundamentação da sentença a ser prolatada.

Se este artigo pode constituir uma novidade conceptual no normativo em questão, já o que se lhe segue, dedicado à Mediação, é a transcrição do art.º 147.º-D da OTM, a que o legislador apenas acrescentou um número que atribui ao juiz o dever de informar os interessados sobre a existência e os objectivos dos serviços de mediação familiar, estendendo aos processos relativos às responsabilidades parentais o que já estava legislado em matéria de divórcio no art.º 1774.º C.C.

Finalmente o art.º 38.º, que nos deve merecer um olhar muito atento pois que, apesar do art.º 24.º prever a possibilidade de em qualquer estado da causa poder ser suscitado o recurso aos serviços de mediação familiar, foi a conferência de pais em que não haja acordo, o momento eleito pelo legislador para os pais serem informados sobre a existência e os objectivos dos serviços de mediação. Dizemos mesmo mais, essa informação deverá motivar os pais para a utilização deste meio de resolução de conflitos, pelas inúmeras vantagens que representa em termos de pacificação e autodeterminação da família e de preservação das suas relações.

Em nosso entender não existe aqui uma liberdade de escolha pura, nem aleatória, entre Mediação e ATE, devendo ser a medição a primeira opção, quer pela sua colocação na alínea a) do artigo, só depois seguida da ATE constante da alínea b), quer pelo princípio da consensualização como estruturante do RGPTC. Note-se que em todos os artigos anteriormente analisados o legislador menciona a ATE em primeiro lugar, sendo o art.º 38.º o único em que inverte essa referência, não por mero acaso, mas mostrando que neste momento processual é de privilegiar o recurso à mediação enquanto verdadeiro meio de resolução consensual de conflitos, assim se cumprindo a prevalência e promoção da consensualidade.

Em nosso entender apenas, e tão só, quando não houver consentimento das partes para a intervenção dos serviços de mediação familiar, deverão as mesmas ser remetidas para ATE, sendo que a opção por esta instância instrutória não depende da vontade das partes, mas da necessidade de trazer ao processo, a requerimento do juiz da causa, novos elementos e de lhe imprimir uma nova dinâmica.

Em jeito de nota final deixamos aqui a necessidade de um maior investimento no recurso à mediação familiar, enquanto espaço de confiança e liberdade, para partilhar emoções e identificar necessidades e onde se permite às próprias famílias estruturarem o seu futuro, definirem as suas regras fora do tribunal, a ele voltando para homologação do acordo atenta a natureza dos direitos das crianças e a sua tutela jurídica.

Apesar de nos termos referido inicialmente à mediação e à ATE como “instrumentos”, concluímos pela necessidade de distinguir claramente mediação enquanto instância de resolução autónoma integrada no processo judicial e audição técnica especializada enquanto instância instrutória, a par da necessidade de se promover o recurso preferencial à mediação, tal como entendemos ser o espírito da lei e o caminho irreversível do direito da família na nossa sociedade.

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